terça-feira, 2 de junho de 2015

Clarice Lispector, in: Paixão segundo G.H.

"Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender.
Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda.
Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu,
pelo fato de não a saber como viver, vivi uma outra?
A isso quereria chamar desorganização, e teria a segurança de me aventurar,
porque saberia depois para onde voltar: para a organização anterior.
A isso prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no que vivi
- na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o tinha,
e sei que não tenho capacidade para outro.
Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser - se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias,
o mundo inteiro terá que se transformar para eu caber nele.
[...]
Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida.
Sei que precisarei tomar cuidado para não usar superficialmente uma nova terceira perna que em mim renasce fácil como capim,
e a essa perna protetora chamar de uma verdade.
Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a realidade é mesmo que nada existiu?!
Quem sabe nada me aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só acontece o que eu compreendo - que sei do resto? O resto não existiu. Quem sabe nada existiu!
Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande dissolução?
E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta:
a de tentar agora dar-lhe uma forma? Uma forma contorna o caos,
uma forma dá construção à substância amorfa
- a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos,
mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos dias e pelas fomes
- então ela não será mais a perdição e a loucura: será de novo a vida humanizada.
A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida."
 

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