terça-feira, 2 de julho de 2019

Solidão!

Uma crônica sobre pessoas que tratavam a virtude da moderação como se fosse crime. Tempos árduos em que a luta política sepultava amizades. Mas é ficção, pessoal. 
Nada disso ocorre na vida real.


SOLIDÃO

Houve um tempo, amigo, em que os homens se converteram em carrascos.
Um tempo de cólera, de paixões à flor da pele.
Faleceram os diálogos e, em seus túmulos, as lápides lamentaram as amizades mortas, os parentes sepultados, os amores rompidos.

Eu caminhei pelas sombras à procura de ti, meu amigo de outras eras. Soprei a poeira de velhas fotografias onde ríamos juntos. Colei as cartas que rasguei, onde me desenhavas carícias em forma de letras. Elas entravam pelos meus olhos e pingavam amor no meu coração-menino. Passado.
Por onde andas agora que este muro nos separa? Veio a guerra e te perdi.

Caminho só, com a arma nos ombros, carregado de certezas e de balas. Na última que te vi – faz tantos anos – mirei no meio da testa. Acertei e me ri de tua queda e humilhação. Importava a guerra e a grande missão de minh´alma. Tu saíste carregado, amparado pelos teus.

Fui em busca de outros. Comigo, milhares seguiam, todos em santa missão: livrar o mundo dos males. Ninguém plantava ou colhia, entretidos com a batalha. Novas armas, berros, loucura e canibalismo.
Parei diante de uma parede e ali vi um monstro. Meu inimigo por certo. Dedos em forma de garra, a língua vibrando à procura de um lombo para fustigar. Ergui a arma, devagar, mas reconheci os olhos. Onde os vira antes? Tonto de horror, descobri: eram os meus.
Era eu aquela criatura deformada. Vi o buraco no peito vazio, os olhos injetados, com raiozinhos vermelhos, a língua partida em dois. O ódio era vírus nefasto a me devorar dia após dia. Consumira minha humanidade, intoxicara os pensamentos e me convertera em tirano.
Chorei por mim.
Em busca da salvação, carreguei minha sombra desfigurada por caminhos de cinza. Andrajoso, coberto de cicatrizes, iniciei a longa volta para casa. Plantei flores sobre os túmulos, mas os mortos não as viram.
Demorei muito a perceber que eu era vítima do medo. Um temor injetado diretamente na alma, devagar, por muitos anos. O pavor matou minha inocência, mas também minha bondade. É que o medo transforma os homens em feras. Entra sem alarde e, quando a gente percebe, faz brotar sob a pele uma grossa camada de lama. Havia escamas sobre os meus olhos, e elas me impediam de ver sutilezas. A princípio, acreditei que tudo aquilo era apenas um recurso da natureza para me tornar mais forte. Errei.
Agora, quando sopra a brisa nova e os caules das flores balançam, penso nos campos da Europa, onde milhares de filhos, de amantes e de paizinhos estão cobertos por papoulas vermelhas. As raízes chupam o sangue dos mortos e nutrem as flores bem rubras. Beleza triste, abatida. Tudo por medo, por guerra, por seguir homens loucos idolatrados por gente que trazia o coração estrangulado de medo
Onde estás? Fala, pois tua mudez me seca por dentro e abre abismos de solidão em mim.

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