terça-feira, 25 de outubro de 2016

(Crônica de RUBEM BRAGA)

“ORA, tivemos ontem uma sexta-feira com alma de sábado. Depois de tantos e tão longos dias de mormaço, de nuvens, chuva, de aborrecimento, chegou o sol primaveril. Ah, que infame fui eu falando mal da primavera desta capital! Serias tu, Porto Alegre, uma cidade sem primavera? De Niterói costuma-se dizer que não tem lua: a população local contempla a lua do Rio.
Pois a primavera chegou. Numa sexta-feira como os lobisomens. Clara e suave, ela chamou para rua os homens e as moças e as mulheres. E as ruas se encheram. Fiquei comovido vendo como as senhoritas desta urbes são sensíveis à luz loira do sol. Em centenas e talvez milhares de residências as moças descobriram ontem à tarde que precisavam ‘fazer uma compras’. Era mentira. Na verdade ninguém queria compara nada. O que havia de bom na cidade, o que chamava as moças e por isso chamava os homens era essa coisa grande coisa grátis, essa graça de Deus, o sol, o ‘claro sol, amigo dos heróis’.
Que heróis? Não temos heróis. Claro sol, amigo das senhoritas. As senhoritas encheram a rua da Praia e outras ruas. E as senhoritas sorriam, e tinham prazer em andar. Como são inúteis e vagamente ridículas e todavia com são memoráveis e excelsa as senhoritas! Salve as senhoritas, as suaves senhoritas amantes da loira luz do sol! Como são inocentes as senhoritas! Como são místicas as senhoritas! Deus abençoe as senhoritas, e o Diabo as carregue!
Eu por mim, homem de idade já conspícua, eu por mim confesso que vaguei pela rua da Praia. Havia montes de rapazes plantados no meio da rua, e as senhoritas desfilavam pelas calçadas. Que fui fazer ali? Havia senhoritas que eram como pardais. Passou uma senhora lânguida, alta, de alvo colo, uma garça real. Passaram louras meninas, canários belgas. Duas eram parecidas com as Irmãs Pagãs. De repente fui atacado de uma saudade das Irmãs Pagãs. As irmãs Pagãs nem se quer me conhecem. Mas eu me sinto irmão das Irmãs Pagãs, porque nós três somos filhos espirituais das transversais da rua do Catete. Lá vos conheci. Louras irmãs levianas, na esquina de Correia Dutra, filhas de uma dona de pensão e portanto tipicamente catetinas. E andáveis sem meias pelas ruas pobres e inquietas do Catete. Depois veio o Destino, e vos levou em automóvel para urcas e copacabanas, buenos aires e outras gloríolas. Não vos guardei rancor. Se pudesse compraria meia dúzia de pares de Irmãs Pagãs. Compraria em espírito de inocência como homem que compra canários. E doze Irmãs Pagãs viveriam soltas pela minha casa, loiras, treinando álacres marchinhas. E eu não as tocaria. Nem sequer lhes falaria. Apenas queria que elas andassem pela casa cantarolando, as loiras irmãs de olhos azuis, umas na cozinha, outras na varanda, outras no quarto, outras no banheiro. Na hora de escrever esta minha pobre crônica uma poderia sentar na mesa em que escrevo, outra abriria o rádio, outra falaria ao telefone, outra ficaria na janela dando adeus para alguém, outra tomaria banho de chuva, outras brincaria de roda.
O mais adorável das Irmãs Pagãs é que elas não são grandes cantoras. Possivelmente são medíocres. Mas que suave e genial mediocridade. Eu também sou medíocre e confesso despudoradamente que adoro as Irmãs Pagãs. Apesar de tudo e apesar de si mesmas, como são inocentes as Irmãs Pagãs! E como são pagãs! E como são inocentemente pagãs!
Voltemos à rua da Praia. Voltemos, que hoje é sábado e faz sol. A tarde vai ser linda. Eu, por mim, voltarei. Eu me plantarei no meio da rua, vagarei para cá e para lá. Vagarei triste e vagamente aflito, sem ganhar sorrisos, mas ao mesmo tempo satisfeito porque haverá sol e haverá mulheres lindas andando ao sol e essa coisa boba e simples me comove e me faz bem, muito mais bem que a música e os versos e qualquer outra coisa do mundo.”


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