terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Tanta hipocrisia, dá nojo!

A Matança

Não penses 
que a carne apenas é aquela oca 
lívida carcaça 
em imóvel galope alucinado, 
embarrada numa trave da adega.

Não penses 
que o milagre anual da salgadeira 
vem sem morte e sem trabalhos. Não:

Contar-te-ei 
que primeiro atam o porco em sua loja 
com uma corda em torno do focinho 
e o arrastam à força para o ar lavado e frio.

Contar-te-ei 
que o porco luta e resiste: ora sentado 
sobre os quartos traseiros (os futuros presuntos), 
ora comicamente no solo as quatro patas 
fincando com bravura se defende 
da mal-agourada violação. Por fim, cedendo, 
colocam-no, ainda contrafeito, 
entre roncos, bufos e sacões, 
no banco, deitado sobre o lado, 
por forma a expor o vulnerável, 
comestível coração.

Contar-te-ei 
que quando a faca penetra nas entranhas, 
qual punhal vingador de antiga fome, 
o grito é tal, tão desolado e aflito, 
tão humano, tão digno de compaixão, 
tão de criatura insultada e indefesa - 
que tenho de tapar a mãos ambas os ouvidos 
e recuar para os fundos da casa, 
onde o rumor mal chegue. Ainda assim, 
a voz implorativa é uma cascata, 
uma cascata lenta e descendente, 
em que o animal se esvai. 
Quando calado - o sangue 
jorrando impetuoso no alguidar - 
é sinal que 
o porco é morto: 
viva o porco!

(A. M. Pires Cabral, in 'Algures a Nordeste)

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